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Terra Caçula

O passado reverbera no presente, os objetos portam histórias, as poéticas ecoam no espaço, o tempo se torna matéria. Com partidos conceituais em comum, o duo Benedito Ferreira e Emilliano Freitas concebe "Terra Caçula", uma mostra-diálogo entre as produções dos artistas, um arranjo que evoca memórias compartilhadas da investigação do tempo/espaço da imaginação. A seleção delineia reminiscências de um tempo pretérito em um território no qual narrativas se justapõem a paisagens rurais. A ocupação no SESC Gurupi nos demonstra a partilha de um espírito profundo entre os estados de Tocantins e Goiás, ligados por uma terra que se ramifica e se torna autônoma.

O colombiano Gabriel García Márquez certa vez afirmou que a própria realidade era mágica, que não inventava nada, nem tampouco tinha imaginação: tudo nos livros era tão somente a realidade. Essa percepção nos invoca a olhar ativamente para a vida, para a realidade e para o passado, não de maneira estanque, mas alicerçados na mutabilidade da impermanência. Há algo de deleitoso no realismo fantástico em que nele, os leitores não são propriamente avisados em quais momentos as ações são verdades, devaneios ou invenções; a criação do onírico é a ação e somos convidados a embarcar nesse universo. 

Em “Terra Caçula”, há um vislumbre do fabuloso, em que nos deparamos com sonhos e experiências passadas, vidas suspensas, elementos apropriados e ressignificados que, no espaço expográfico, desatam poeticamente vivências íntimas.

Em “Ferramentas” (2022), Ferreira se apropria de objetos colecionáveis, que costumavam ser frascos de perfume em formato de figuras antropomórficas, bastante populares nas décadas 1960 e 1970, e que são trasladados ao espaço. As pequenas esculturas foram sendo coletadas em uma operação de rastreio do artista em busca dessas descobertas, rememorando uma vida campesina advinda de referências literárias e visuais estrangeiras que permeiam o olhar do povo brasileiro, sobretudo pelas novelas do horário das seis que comumente exploram temáticas de época. São elementos reconhecíveis, como vestimentas, cenários e narrativas que apontam aos séculos passados. 

O contraste é criado pela inserção da lona azul, referência ao mercado de pulgas, um espaço regido pelo popular, onde o estrangeirismo funde-se ao tipicamente brasileiro. São cacarecos que permeiam o imaginário da nossa terra, amarrados a uma pedra portuguesa — utensílios de uma vivência colonialista que se desvanece ao aroma obsoleto, com cheiro de perfume de avó. Na instalação, Ferreira opera a usabilidade dos objetos, a performatividade destes ao serem ressignificados como objetos escultóricos, o contraste labiríntico entre o clássico e o popular, um equilíbrio tênue entre a força e a delicadeza.

Ao seguirmos no espaço expositivo, nos deparamos com a instalação angulada em ciranda de carrossel, de Freitas, “Eles só existem aqui”. Sua estrutura fluida libera os cavalos e o campo pictórico, criando um corpo para a pintura, operando no limiar entre escultura e pintura. A estrutura circular convida o observador a embrenhar-se no carrossel e a investigar cada uma das pinturas, que, ao olhar desatento, assemelham-se, mas que demonstram a destreza técnica do artista na variação sutil cromática, tornando cada um dos cavalos uma criatura singular.

Há um aspecto notável na escolha da tinta empregada pelo artista, que, na potência da assimilação de elementos previamente pouco usuais às artes visuais, utiliza esmaltes de unha. Investigando a partir do desenho a grande variedade de tons nesses produtos tão recorrentes no cotidiano popular, especialmente por serem associados ao repertório feminino. O uso do esmalte realiza uma atuação dupla: a composição levemente matizada e avolumada derivada da criação de camadas de matéria; e a ressignificação do ato da esmaltação, transformando-a numa feitura estética pertencente a todos os corpos e universos, expandida para além das estruturas heteronormativas.

No corpo de criação de Freitas, as barreiras entre ficção e realidade são sobrepostas, e, de maneira sutil, as camadas negociam relações entre o coletivo e o íntimo. Ao mergulhar em suas vivências materializadas em arquivos como fonte de ressignificação, o artista realiza um retorno às imagens de uma terra melancólica e agrária, envolta pelas reminiscências da infância. É nesse processo que se encontra um repositório de diferenças, afetos, limites e continuidades na vida adulta.

Em tenra infância, Freitas saiu do interior de Minas Gerais em uma viagem familiar e visitou o Mutirama, parque na região central de Goiânia. O brinquedo carrossel, já com sinais de desgaste, foi a abertura ao encantamento do menino Emilliano. Os cavalos romperam os contornos caipiras, associados à masculinidade e à relação entre força e domesticação; ali, eles eram brilhantes, coloridos, iluminados e só poderiam existir naquele espaço e intervalo temporal. O eletrificado imaginário é um potente processo de resistência, no qual a identidade pode existir. Sua memória transmuta-se em poética e as fantasias infantojuvenis estabelecem a existência durante os processos de silenciamento de corpos dissidentes.  

Nos contos de J. J. Veiga, o leitor é levado a se exilar em Platiplanto, onde “do meio das árvores iam aparecendo cavalinhos de todas as cores, pouco maiores do que um bezerro pequeno, vinham empinadinhos marchando, de vez em quando olhavam uns para os outros como para comentar a bonita figura que estavam fazendo”. O encantamento diante da instalação de Freitas parece ser próximo de estarmos absorvidos em Platiplanto, em que o pictórico está intrinsecamente ligado ao íntimo e, na sua materialização diante de nós, ativa-se o sonhar sobre a vida. Somos também recebidos pelo cortejo da cavalaria, uma comitiva tridimensional de cavalos de brinquedo reapropriados que refletem matizes de cor e cristalizam um movimento imponente e definitivo. 

A variedade de suportes ocupa o espaço expositivo na perspectiva aérea, no solo e nas paredes, criando um jogo poético que forja o elo entre eles. A dupla emite vozes em ressonância que completam uma narrativa, um locus a ser ressignificado a ser investigado sob uma perspectiva queer. Diante da dor e do sofrimento ecoados nos versos “Tinha um sonho ir pra Nova Iorque levar a namorada”, todos nós nos vinculamos sincronicamente, contornando a figura do sertanejo em seu arranjo social e seu universo/imaginário.

O trecho usado no trabalho de Benedito pertence à canção “Nova York”, de 1989, da dupla Chrystian & Ralf, músicos goianos que foram influenciados na mesma intensidade por Tião Carreiro e Pardinho e Led Zeppelin. A música explora a potência do que é intraduzível, haja vista as minuciosidades culturais que somente a vivência faculta, retomando os padrões estéticos importados aos acordes e ritmos locais, em que o sonho de ir a Nova Iorque é tão fabuloso como Platiplanto. Entre as guitarras mescladas ao caipira modernizado, a vontade de aproveitar a jornada transforma o sujeito, que, antes de chegar a Nova Iorque, passa por Gurupi e colhe seu dia.

Em “Leite de Córrego”, apreciamos a contemplação pela via do silêncio, da bruteza da comunicação em que absorvemos o contraste e a resistência do sertanejo, a persistência da cultura caipira na secura da terra. O vídeo evoca um outro tempo entoado pela catira, dança coletiva que culmina em palmas e barulhos das botinas ao som da viola caipira. Há algo da busca por um outro ser complementar, talvez do encontro de outra voz em uma dupla, ou até mesmo para se dividir o viver. A edição do trabalho contribui para esse entendimento, na realização de uma montagem fracionada em duas telas que ora se complementam, ora se cortam bruscamente, criando uma percepção ritmada como a dança. 

A formação da identidade caipira/sertaneja interiorana se dá regionalmente, diferenciando-se, entre o caipira picando fumo de Almeida Júnior e os sertanejos que medeiam o imaginário de Benedito e Emilliano. A experiência da vastidão da aridez é intransponível, no entanto, podemos acessá-la aos sermos atravessados no campo expositivo.

O duo partilha a terra goiana, que originou o Tocantins, e são nesses trâmites fronteiriços que assimilamos o terreno caçula, que é maduro em vivência. Benedito e Emilliano dividem um espírito circulante que ressoa no Brasil profundo, enraizando-se em um universo de fabulação que amalgama o local e o estrangeiro. Ter esse olhar atento e aguçado da realidade e se permitir ser levado por elementos mágicos inseridos em cenários cotidianos há de ser um dos maiores desafios existenciais, o que os dois interpelam de maneira primorosa, dominados por um compreensível reflexo sensível e matérico. 

 

Texto da curadora Mariane Beline para a exposição Terra Caçula, no SESC Tocantins - Gurupi (Gurupi/TO).  Setembro de 2024.

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Reconfigurações do Presente: Diálogos possíveis na Arte Contemporânea de Goiás

O Panorama de Arte Contemporânea de Goiás surge como uma iniciativa ambiciosa, com o propósito de celebrar e impulsionar a efervescente cena das artes visuais em nosso estado. Trata-se de uma proposta que, ao reunir uma diversidade de produções, visa oferecer uma plataforma de divulgação tanto para artistas emergentes quanto para aqueles já consagrados. No entanto, é preciso reconhecer as limitações inerentes a qualquer proposta curatorial: a impossibilidade de abarcar toda a multiplicidade de artistas que despontam em Goiás atualmente. O recorte apresentado, por mais plural e interseccional que seja, inevitavelmente resulta em ausências, refletindo as escolhas e critérios adotados pela curadoria e a comissão de seleção do Panorama.

Os trabalhos de Benedito Ferreira e Emilliano Freitas estabelecem diálogos sobre a memória, a perda e a efemeridade. (...) Emilliano, por sua vez, investiga o cuidado, a dualidade entre vida e morte e as relações familiares. Partindo de um vídeo VHS gravado por sua mãe em 1998, ele transforma as imagens em pinturas carregadas de esmalte de unha, material que traz uma conexão íntima com o ofício de manicure de sua mãe. O processo de converter essas memórias efêmeras em formas permanentes reflete uma tentativa de preservar a fragilidade da vida, encapsulando lembranças em uma materialidade duradoura.

Trecho do texto do curador Paulo Henrique Silva para a exposição Panorama da Arte Contemporânea de Goiás, na Galeria de Artes Antônio Sibasolly (Anápolis - GO).  Agosto de 2024.

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Mas quando a gente é menino parece que as coisas nunca saem como a gente quer

 

A exposição Mas quando a gente é menino parece que as coisas nunca saem como a gente quer, de Emilliano Freitas, reúne uma série de trabalhos realizados a partir de 2020. Através de diversas linguagens como a pintura, o desenho e o vídeo, o artista mergulha no conjunto de suas memórias afetivas para logo convocá-las a um diálogo com o momento contemporâneo.

Um primeiro olhar às obras nos permite identificar os assuntos, ou seja, as atividades mais cotidianas da vida latino-americana; celebrações tais como as festas juninas, casamentos, comunhões, aniversários, mas também jogos de futebol, simples passeios e visitas aos parques de diversões. Num olhar mais atento, sobretudo às materialidades das obras, é possível identificar o uso de folhas de caderno, grafite e esmalte de unha como material pictórico, que nos apresentam um profundo repertório de significados. As séries Pose e Quadrilha, desenhos em grafite sobre folhas de caderno escolar, revelam as pesquisas do artista sobre aqueles corpos dissidentes durante a infância que fogem aos padrões heteronormativos. Já nas pinturas, realizadas com esmalte de unha, Freitas ressignifica o material utilizado por sua mãe em seu trabalho como manicure que historicamente está vinculado não só ao ofício, mas também aos espaços de intimidade e cumplicidade femininos. Todas as obras partem de fotografias pessoais do artista que logo são revisitadas, reinterpretadas, recortadas e modificadas, (re)escrevendo novas histórias num autêntico exercício de autoficção.

A cartografia dos fragmentos visuais da memória individual feita por Emilliano Freitas de repente se faz coletiva e interpela ao espectador de forma visceral fazendo com que, pelo menos no primeiro instante, nos sintamos espelhados nestas vivências cotidianas. O título da mostra é uma frase do conto Os cavalinhos de Platiplanto, do autor goiano José J. Veiga, vinculado ao realismo fantástico que tem servido de base para as pesquisas do artista ao pensar a vida das crianças no interior do Brasil central. As obras de Freitas e o conto de Veiga se encontram no olhar do adulto que vasculha as experiências e memórias da infância num lirismo fantástico e mágico, em que o real e o ficcional se entrelaçam, fazendo da imaginação um refúgio possível. A série Cavalinhos do Mutirama é um excelente exemplo deste exercício em que o artista mescla imagens fotográficas de seu arquivo pessoal com cavalinhos do carrossel do Parque Mutirama, em Goiânia, nos quais se transforma em príncipe, anjo, astronauta ou personagens de desenhos animados. Inocência, ingenuidade e brincadeiras se encontram nas memórias e fotografias utilizadas pelo artista, mas também em seu próprio fazer artístico, que revela um fator lúdico importante que, como demonstrou o filósofo Johan Huizinga em Homo ludens, é impulso congênito da criação artística.

Texto de Paulo Duarte-Feitoza para a exposição Mas quando a gente é menino parece que as coisas nunca saem como a gente quer, no SESC Tocantins - Palmas (Palmas/TO). Abril de 2023. 

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O muito que sobrou

Já dançamos os mesmos versos de Gonzaga, numa noite igual a esta: o céu em festa, onde os balões vão sumindo. No salão, fogueira, xote e baião. Na barriga, o nervosismo de dançar com quem gosta. No corpo, o capricho detalhado em cetim.

Através dos seus arquivos pessoais, Emilliano Freitas torna o tempo infinitamente gerúndio quando transforma a fotografia em pintura de aparência úmida. Apesar da visualidade das obras ser típica das décadas de 80 e 90, seu tempo é dilatado e sem previsão de fim, pois o presente também se preenche na ausência daqueles rostos. Compartilhamos essas experiências e, por isso, as memórias saem de si para permitir que nos reconheçamos nessas manchas de esmalte, material utilizado em referência ao ofício de manicure da sua mãe.

Em um sussurro melódico, a montagem conta narrativas que aconchegam e propõem atenção. Entrecruzando o afeto e o político, Emilliano torna a memória estratégia de evidência de uma estrutura social permeada por padrões de gênero e sexualidade hegemônicos. Margaridas, roupas, poses e festividades atuam em nosso imaginário como instrumentos adestradores de crianças conforme ideais de uma sociedade fundamentalmente colonial e cristã.

O cristianismo por base, a civilização por princípio. Na perspectiva da pesquisadora María Lugones, nossa subjetividade foi alterada por uma colonização que normatizou a ideia de gênero para determinar o humano a partir da compreensão do masculino. Embora a humanidade tenha sido negada aos colonizados, persistimos na performatividade do gênero disciplinada na infância, em aliança com a heterossexualidade: ensaiamos em São João e casamos em comunhão.

Nessa doutrina de si, apaga-se o infinitamente particular. Faltamos. Na busca de compensar, vamos excedendo a nós mesmos. Sobramos. Nessas camadas de recriação, viramos adultos em palimpsesto e, como se aprendêssemos a não sentir, esquecemos de quando não éramos humanos. Emilliano, porém, olha para a sua criança e faz questão de lembrar da afetividade familiar e das celebrações que teve em excesso.

No entanto, o que se compartilha aqui é mais que a sobra. Propondo olhares heterogêneos e atento às latências contemporâneas, o artista nos convida a uma experiência do compartilhamento de memórias e reflexões em um encontro de tempos dilatados.

 

Texto de Rayssa Veríssimo para a exposição O muito que sobrou, na Vila Cultural Cora Coralina (Goiânia/GO). Fevereiro de 2022. 

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Mateiga Derretida

Emilliano Freitas utiliza suas experiências e conhecimentos para aproximar os espetadores de um universo sensível carregado de lembranças, sentimentos, intenções, sensações e emoções. Memórias pessoais são resgatadas e, através de diversas técnicas artísticas, são transformadas em imagens poéticas da vida e de sua realidade. 
A cotidianidade da infância, das festas de aniversário, de apresentações escolares, e a intimidade da sua vida adulta são alguns dos temas que servem como gatilho para problematizar e questionar os diversos elementos e discursos hegemônicos que no nosso tempo estão longe de ser o drama de uma única criança. Através das narrativas visuais aqui apresentadas, os temas tornam-se o grito e a luta de uma coletividade que há anos vem sendo apontada por sua sensibilidade e propensão às lágrimas.

Texto do curador Eliakins Lopez para a exposição Manteiga Derretida, na Galeria do Centro Cultural Tupaciguara. Setembro de 2022.

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Esse menino chora demais

Por que algumas vivências do passado habitam nossa memória mais intensamente do que outras? Qual o significado dessas permanências na formação de cada um de nós como sujeito? Esquecer seria então mais um ato de desprezo ou sobrevivência? Emilliano Freitas descortina nesse espaço uma investigação poética sobre seus primeiros anos de vida e oferece formas visuais que indicam caminhos ao processamento de memórias no tempo. Trata-se de uma tarefa que une saberes técnicos a um profundo desejo por fazer de feridas as cicatrizes de um corpo que cresceu e abriu-se ao mundo.

Os trabalhos foram feitos tendo como base imagens do passado, de um evento datado e concluído décadas atrás, mas que ainda seguem em transformação. O menino que chora(va?) demais debruça-se sobre sinais que emanam dessas imagens para explorar o campo ambivalente e contraditório das relações familiares. Tem-se então um adensamento de reflexões que miram relações temporais contemporizadas em multimeios – uma ironia em se tratando de uma criança cuja única linguagem que dominava era a do choro.

Um corpo que chora porque ainda não domina a língua é um corpo que anseia por comunicar-se; expor suas urgências àqueles que o cerca. Ocorre que esse não é o comportamento que se espera de um menino – promessa de Homem – em um tradicional núcleo machocrata. Respostas ao choro do passado são conjecturadas aqui, o que representa não a conclusão de um processo, mas uma forma de metabolizá-lo. Felizmente temos a certeza de que meninos choram sim e continuarão a chorar enquanto existirem.

 

Texto do curador Victor Zaiden para a exposição Esse menino chora demais, na Galeria Ido Finotti (Uberlância/MG). Março de 2020. 

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“Pose (Fera nenen)”, de Emilliano Freitas, nos comove até a dor. Um desenho feito em uma folha de caderno escolar; e os parques solitários e as bolas sem utilização.

Sem risadas, sem amarelinha.

Texto da curadora Morella Jurado para catálogo do 2o Salão Nacional de Arte em Pequenos Formatos de Britânia. Outubro, 2020.

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O arbitrário tem a ver com eventual. Memórias, ideias e percepções fervilham nossas mentes em cada momento da existência e o risco é um esforço de externá-las, eventualmente. Assim, risca-se para se concentrar em algo importante ou se desligar de algo tedioso, quando se deseja rememorar ou converter o momento em lembrança, ou ainda quando é preciso explodir ideias, sejam elas técnicas, subjetivas, ambiciosas e ansiosas. Acontece que o arbitrário não se baseia na lógica ou na razão, ele segue apenas o arbítrio de quem decide. "Notas íntimas arbitrárias" representam uma catarse biográfica do artista que as riscou, todas as obras vem de uma praxe de (quase sempre) se carregar um caderno sem pauta e decidir riscar em algum momento. É o retrospecto de um turbilhão de pensamentos e sentimentos vividos nestes anos recentes em que ocorreram inúmeras e intensas mudanças. 

Nesse universo ordinário, "i. notas" desvelam performances habituais de arquitetura, cenografia e ensino (não necessariamente nesta ordem). ii. intimas" exploram o subjetivo vivenciado no cotidiano. A praxe do dia a dia nos faz imergir ora em devaneios, ora em obviedades e automatismos. Não parece clara a mensagem dos riscos, até porque pode não haver mensagem alguma, mas vale lembrar que é precisamente nesses devaneios e automatismos que, muitas vezes, o inconsciente se expressa. Não há racionalizações, parecem e aparecem ensaios de composição, um flerte com o erótico, representações de botânica, talvez alguns desejos íntimos, talvez algumas perspectivas de ver o mundo. Os grafismos coabitam com desenhos de pessoas, em grande parte mulheres (dos quais se deriva uma coleção formidável de moda) e desenhos que parecem aleatórios, se entendermos aleatório como aquilo que é tão honesto que é como se fosse uma ligação direta entre a mente e o traço do artista, sem lá muitos filtros. Algumas mensagens já surgem um pouco mais explicitas em "iii.arbitrário", o artista decide riscar também a palavra  - tanto como composição gráfica, mas também se valendo do significado dos vocábulos - para mostrar seus juízos, sentimentos, percepções, provocações, sua ousadia e seu engajamento.

Texto da curadora Karine Oliveira, para a exposição Notas íntimas arbitrárias, na Biblioteca Cajuí (Goiás/GO). Outubro de 2018.

 

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