O muito que sobrou
Já dançamos os mesmos versos de Gonzaga, numa noite igual a esta: o céu em festa, onde os balões vão sumindo. No salão, fogueira, xote e baião. Na barriga, o nervosismo de dançar com quem gosta. No corpo, o capricho detalhado em cetim.
Através dos seus arquivos pessoais, Emilliano Freitas torna o tempo infinitamente gerúndio quando transforma a fotografia em pintura de aparência úmida. Apesar da visualidade das obras ser típica das décadas de 80 e 90, seu tempo é dilatado e sem previsão de fim, pois o presente também se preenche na ausência daqueles rostos. Compartilhamos essas experiências e, por isso, as memórias saem de si para permitir que nos reconheçamos nessas manchas de esmalte, material utilizado em referência ao ofício de manicure da sua mãe.
Em um sussurro melódico, a montagem conta narrativas que aconchegam e propõem atenção. Entrecruzando o afeto e o político, Emilliano torna a memória estratégia de evidência de uma estrutura social permeada por padrões de gênero e sexualidade hegemônicos. Margaridas, roupas, poses e festividades atuam em nosso imaginário como instrumentos adestradores de crianças conforme ideais de uma sociedade fundamentalmente colonial e cristã.
O cristianismo por base, a civilização por princípio. Na perspectiva da pesquisadora María Lugones, nossa subjetividade foi alterada por uma colonização que normatizou a ideia de gênero para determinar o humano a partir da compreensão do masculino. Embora a humanidade tenha sido negada aos colonizados, persistimos na performatividade do gênero disciplinada na infância, em aliança com a heterossexualidade: ensaiamos em São João e casamos em comunhão.
Nessa doutrina de si, apaga-se o infinitamente particular. Faltamos. Na busca de compensar, vamos excedendo a nós mesmos. Sobramos. Nessas camadas de recriação, viramos adultos em palimpsesto e, como se aprendêssemos a não sentir, esquecemos de quando não éramos humanos. Emilliano, porém, olha para a sua criança e faz questão de lembrar da afetividade familiar e das celebrações que teve em excesso.
No entanto, o que se compartilha aqui é mais que a sobra. Propondo olhares heterogêneos e atento às latências contemporâneas, o artista nos convida a uma experiência do compartilhamento de memórias e reflexões em um encontro de tempos dilatados.
Texto de Rayssa Veríssimo para a exposição O muito que sobrou, na Vila Cultural Cora Coralina (Goiânia/GO). Fevereiro de 2022.
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Mateiga Derretida
Emilliano Freitas utiliza suas experiências e conhecimentos para aproximar os espetadores de um universo sensível carregado de lembranças, sentimentos, intenções, sensações e emoções. Memórias pessoais são resgatadas e, através de diversas técnicas artísticas, são transformadas em imagens poéticas da vida e de sua realidade.
A cotidianidade da infância, das festas de aniversário, de apresentações escolares, e a intimidade da sua vida adulta são alguns dos temas que servem como gatilho para problematizar e questionar os diversos elementos e discursos hegemônicos que no nosso tempo estão longe de ser o drama de uma única criança. Através das narrativas visuais aqui apresentadas, os temas tornam-se o grito e a luta de uma coletividade que há anos vem sendo apontada por sua sensibilidade e propensão às lágrimas.
Texto do curador Eliakins Lopez para a exposição Manteiga Derretida, na Galeria do Centro Cultural Tupaciguara. Setembro de 2022.
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Esse menino chora demais
Por que algumas vivências do passado habitam nossa memória mais intensamente do que outras? Qual o significado dessas permanências na formação de cada um de nós como sujeito? Esquecer seria então mais um ato de desprezo ou sobrevivência? Emilliano Freitas descortina nesse espaço uma investigação poética sobre seus primeiros anos de vida e oferece formas visuais que indicam caminhos ao processamento de memórias no tempo. Trata-se de uma tarefa que une saberes técnicos a um profundo desejo por fazer de feridas as cicatrizes de um corpo que cresceu e abriu-se ao mundo.
Os trabalhos foram feitos tendo como base imagens do passado, de um evento datado e concluído décadas atrás, mas que ainda seguem em transformação. O menino que chora(va?) demais debruça-se sobre sinais que emanam dessas imagens para explorar o campo ambivalente e contraditório das relações familiares. Tem-se então um adensamento de reflexões que miram relações temporais contemporizadas em multimeios – uma ironia em se tratando de uma criança cuja única linguagem que dominava era a do choro.
Um corpo que chora porque ainda não domina a língua é um corpo que anseia por comunicar-se; expor suas urgências àqueles que o cerca. Ocorre que esse não é o comportamento que se espera de um menino – promessa de Homem – em um tradicional núcleo machocrata. Respostas ao choro do passado são conjecturadas aqui, o que representa não a conclusão de um processo, mas uma forma de metabolizá-lo. Felizmente temos a certeza de que meninos choram sim e continuarão a chorar enquanto existirem.
Texto do curador Victor Zaiden para a exposição Esse menino chora demais, na Galeria Ido Finotti (Uberlância/MG). Março de 2020.
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“Pose (Fera nenen)”, de Emilliano Freitas, nos comove até a dor. Um desenho feito em uma folha de caderno escolar; e os parques solitários e as bolas sem utilização.
Sem risadas, sem amarelinha.
Texto da curadora Morella Jurado para catálogo do 2o Salão Nacional de Arte em Pequenos Formatos de Britânia. Outubro, 2020.
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O arbitrário tem a ver com eventual. Memórias, ideias e percepções fervilham nossas mentes em cada momento da existência e o risco é um esforço de externá-las, eventualmente. Assim, risca-se para se concentrar em algo importante ou se desligar de algo tedioso, quando se deseja rememorar ou converter o momento em lembrança, ou ainda quando é preciso explodir ideias, sejam elas técnicas, subjetivas, ambiciosas e ansiosas. Acontece que o arbitrário não se baseia na lógica ou na razão, ele segue apenas o arbítrio de quem decide. "Notas íntimas arbitrárias" representam uma catarse biográfica do artista que as riscou, todas as obras vem de uma praxe de (quase sempre) se carregar um caderno sem pauta e decidir riscar em algum momento. É o retrospecto de um turbilhão de pensamentos e sentimentos vividos nestes anos recentes em que ocorreram inúmeras e intensas mudanças.
Nesse universo ordinário, "i. notas" desvelam performances habituais de arquitetura, cenografia e ensino (não necessariamente nesta ordem). ii. intimas" exploram o subjetivo vivenciado no cotidiano. A praxe do dia a dia nos faz imergir ora em devaneios, ora em obviedades e automatismos. Não parece clara a mensagem dos riscos, até porque pode não haver mensagem alguma, mas vale lembrar que é precisamente nesses devaneios e automatismos que, muitas vezes, o inconsciente se expressa. Não há racionalizações, parecem e aparecem ensaios de composição, um flerte com o erótico, representações de botânica, talvez alguns desejos íntimos, talvez algumas perspectivas de ver o mundo. Os grafismos coabitam com desenhos de pessoas, em grande parte mulheres (dos quais se deriva uma coleção formidável de moda) e desenhos que parecem aleatórios, se entendermos aleatório como aquilo que é tão honesto que é como se fosse uma ligação direta entre a mente e o traço do artista, sem lá muitos filtros. Algumas mensagens já surgem um pouco mais explicitas em "iii.arbitrário", o artista decide riscar também a palavra - tanto como composição gráfica, mas também se valendo do significado dos vocábulos - para mostrar seus juízos, sentimentos, percepções, provocações, sua ousadia e seu engajamento.
Texto da curadora Karine Oliveira, para a exposição Notas íntimas arbitrárias, na Biblioteca Cajuí (Goiás/GO). Outubro de 2018.